Entre os dias 4 e 13 de julho, o Jardim do Cerco, em Mafra, foi palco de celebração e reflexão no Festival do Pão. A Plataforma Nacional do Pão, iniciativa da AHRESP, organizou um debate dedicado ao papel do pão na alimentação, na cultura e na identidade regional.
O moderador Paulo Amado, fundador das Edições do Gosto e da revista Manja, abriu a sessão com um alerta direto: “O pão é reflexo do território. Se esse reflexo mudar, muda também a cultura. Hoje comemos ‘pão da hora’, que de pão só tem o nome – porque pão é farinha, água, sal e tempo.” Ao lembrar que a tradição corre o risco de se perder se os saberes não forem transmitidos às novas gerações, deixou no ar uma questão inquietante: a nossa mudança de hábitos alimentares estará a apagar o “pão de antigamente” e, com ele, uma parte de quem somos?
A investigadora Rita Beltrão, doutorada em Tecnologia de Alimentos, apresentou o “Guia do Pão em Portugal”, um projeto de literacia alimentar que documenta produtores, moagens, padarias e até museus dedicados ao pão em Portugal. “O objetivo é sabermos mais sobre o pão. Quando sabemos de onde vem, como se faz e quem o faz, somos consumidores mais conscientes. Comer bem é um ato de cidadania e de saúde.” A especialista sublinhou a importância da produção nacional de cereais, que representa, atualmente, somente 10% da necessidade interna: “Temos território, temos saber, mas falta vontade política e valorização. A maior parte das farinhas vêm de fora. Precisamos voltar a investir na nossa terra”, defendeu.
Filipe Martins, da Kubidoce (Olhão), partilhou a sua experiência de transformação da padaria, apostando exclusivamente em fermentação natural e farinhas de qualidade. “Quisemos regressar ao essencial. Fazer pão que sabe a pão, com cevada torrada e sem aditivos. Nada de corantes, nada de fermentos industriais.” Filipe reinventou o folar de Olhão com fermentação natural e sabores locais como figo, batata-doce e laranja.
José Carlos Santos, da Padaria Dias (Covilhã), defende uma abordagem equilibrada entre tradição e inovação: “Na Serra da Estrela usamos água pura, milho moído em moinhos de água e centeio local. Mantemos receitas antigas como o pão de quartos da Covilhã”, que se distingue pela sua forma característica em florão, moldado para formar quatro gomos que desenham uma cruz – uma marca visual que combina tradição, estética e identidade regional.
Qualidade tem um preço justo
Todos os intervenientes reforçaram a necessidade de educar o consumidor sobre o verdadeiro custo do pão de qualidade. Rita Beltrão não podia ser mais clara na observação: “As pessoas gastam em telemóveis, roupa, carros. Mas nos alimentos — aquilo que colocamos dentro do nosso corpo todos os dias — querem sempre o mais barato. Porquê?”
O pão artesanal pode parecer mais dispendioso, mas, como frisaram os oradores, representa um investimento na saúde, no sabor e na sustentabilidade. “Estamos a falar de uma diferença de 10 a 20 cêntimos por dia. É esse o preço da nossa saúde?”, questionou.
O debate terminou com uma degustação de vários pães apresentados pelos padeiros. Houve espaço para partilha, perguntas do público e uma certeza reforçada: O pão é muito mais do que alimento — é cultura, é saúde e memória.
Oficina Culinária fecha iniciativas da Plataforma Nacional do Pão, em Mafra
As iniciativas da Plataforma AHRESP nesta edição do Festival do Pão fecharam com a oficina culinária “Pão Criativo para Jovens – Como fazer pão de forma prática e inovadora?”, conduzida por Daniel Brandão, da Crescente Padaria Artesanal (Sanra Maria da Feira). Num registo acessível e envolvente, Daniel destacou a importância da fermentação lenta como pilar essencial para obter um pão verdadeiramente saboroso, nutritivo e de qualidade.
Daniel partilhou a sua paixão pelo pão artesanal: “Sabemos que nunca vamos agradar a toda a gente. Há quem procure aquele pão fofo, leve, de aspeto uniforme. E está tudo bem. Mas o nosso trabalho é feito a pensar nas pessoas que querem um pão mais natural e saudável, que não provoca azia, que não deixa aquela sensação de enfartamento. E essas pessoas voltam, reconhecem o valor.”
Durante a oficina culinária referiu as solicitações de clientes por pão sem glúten, explicando que a maior parte das vezes as pessoas não são intolerantes, e “é aqui que entra o papel do conhecimento. Porque o problema nem sempre está no glúten, mas nos processos e nos ingredientes ultraprocessados que encontramos nos pães de supermercado”, explicou.
Revela que o segredo de um bom pão “está em trabalhar bem a massa. A técnica da autólise (permite que a farinha absorva a água, as enzimas presentes na farinha comecem a trabalhar e o glúten se desenvolva) ajuda a desenvolver naturalmente o glúten, sem esforço excessivo. Imaginem o que era, há décadas, amassar 80 kg de massa à mão. Era trabalho de força, de técnica, de tempo — e de respeito pela matéria-prima.”