Ana Jacinto conversa com Justa Nobre | “A cozinha é paixão”

Mar 27, 2025

Justa Nobre nasceu no coração de Trás-os-Montes, cresceu rodeada de sabores autênticos e aromas que marcaram a sua infância. Em Lisboa, fez história como uma das grandes figuras da gastronomia portuguesa. Conhecida pelo talento, pela criatividade e pela força de vontade, construiu uma carreira a pulso — sempre ao lado do marido, António Nobre. A conversa com a secretária-geral da AHRESP centrou-se na qualificação dos profissionais da restauração e do alojamento turístico, onde foi realçada a crescente necessidade de captação e retenção de talento, bem como da valorização profissional

© Fotografia: Nuno Martinho e Bolsa de Empregabilidade

Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP, conversou com a chef Justa Nobre no âmbito de uma sessão pública dedicada à valorização das profissões na restauração, durante a Bolsa de Empregabilidade, em Lisboa. Justa Nobre partilhou o seu percurso e uma visão apaixonada — e com a desarmante honestidade que lhe é característica — sobre o setor.

Sem formação técnica ou aulas de culinária, Justa começou a cozinhar com o que sabia de casa. Mas o que lhe faltava em técnica formal, sobrava-lhe em paixão. E foi isso que fez, e ainda faz, a diferença. Faria tudo igual e de nada se arrepende das 16 ou 18 horas que chegou a trabalhar por dia.

E assim, de coração aberto partilhou os ingredientes essenciais para cozinhar um bom profissional na área da restauração: vocação, paixão, capacidade de trabalho. “Esta profissão não é para mimados. É bonita, mas é exigente. Temos de lidar com pessoas, dar amor, dar atenção. Quem se melindra com um raspanete, não está preparado. Mas quem ama isto, vai longe.”

🗣️ “Ser mulher nunca me limitou. Entrei na cozinha sem experiência, mas com vontade. E fui à luta.”

Ana Jacinto [AJ]: A Justa é uma das mais relevantes figuras da gastronomia portuguesa: foi difícil chegar onde chegou, especialmente sendo mulher?

Justa Nobre [JN]:  Bom dia! É um prazer estar aqui — mas depois de tudo o que foi dito sobre mim, já posso ir embora! [risos] Foi difícil, claro. Mas não por ser mulher. Ser mulher não nos limita em nada. Entrei na cozinha com 21 anos, sem experiência, sem escola, sem aulas, sem nada. Era uma cozinheira de casa. Comecei assim, do nada, e fui parar a um restaurante há 46 anos. Nós precisamos é de ser teimosos, de saber o que queremos. E ninguém nos pode fazer frente. Se gostamos de uma profissão — seja na cozinha ou na sala — temos de ir à luta. Temos de provar que temos valor. Foi isso que eu fiz a vida toda. Nunca tive medo de nada nem de ninguém.

🗣️ “Ser empregado de mesa, agora “assistente de sala”, tem muito glamour. É um serviço bonito, é cuidar das pessoas. Às vezes, uma boa refeição vale mais que uma ida ao psicólogo. Faz bem à alma.

[AJ]: É verdade que hoje há profissões da restauração que têm algum glamour, como o “chef”, mas outras continuam a não ser tão atrativas. Recentemente, foi alterada a categoria profissional de “empregado de mesa” para “assistente de sala”. Para si é importante esta redenominação?

[JN]: Se algumas pessoas se sentem mais valorizadas, claro que pode ajudar. Rejeito completamente a ideia de que a profissão de empregado de mesa seja “menos nobre”. Se o novo termo “assistente de sala” valoriza ainda mais a função, é positivo! Mas para mim, a profissão de empregado de mesa sempre teve glamour. O meu marido (António Nobre), se aqui estivesse, iria demonstrar a sua alegria a falar desta profissão. Ser chefe de sala é muito bonito: perceber as pessoas, saber o que gostam de comer, tratá-las pelo nome. É um serviço lindo. Eu adoro ir à sala, conhecer os meus clientes, saber se estão a gostar do prato. Servir é um estado de espírito. Às vezes, uma boa refeição ajuda a fechar um bom negócio. Outras vezes, é melhor do que ir ao médico. Nós, muitas vezes, somos psicólogos também. Servir bem pode mudar o dia de uma pessoa.

[AJ]: Se é tão importante, tão apaixonante, se de facto faz toda a diferença, como é que a Justa explica a pouca atração para esta atividade?

[JN]: Porque se calhar não se explica o quão bonito isto é. Talvez as escolas tenham de fazer mais. Mostrar a beleza disto, incentivar mais, mandar os alunos para os restaurantes, para a sala, para as cozinhas para porem “as mãos na massa” e apreciarem. Sinto que falta entusiasmo, talvez até dos professores. E os jovens também têm de perceber que isto dá trabalho. Ser chef não é só aparecer nas revistas ou na televisão. É preciso sentir o que se faz. As escolas podem ajudar a incentivar mais essa paixão conectando os alunos com a realidade, que é tão bonita quando se gosta do que se faz. Mas também é preciso perceber se os jovens estão mesmo vocacionados para esta profissão. Como tenho dito, se não há paixão e força de vontade, também é difícil.

🗣️ “Se gostamos de uma profissão, temos de andar para a frente e provar o nosso valor.”

[AJ]: As empresas estão preparadas para receber jovens que ainda têm muito para aprender e começam, como a Justa disse, muitas vezes como estagiários? Porque há um aspeto importante que também é preciso transmitir nestas profissões, quer da restauração, quer do alojamento turístico: há uma efetiva possibilidade de os jovens fazerem carreira rapidamente, desde que haja um plano adequado, muito esforço, empenho e dedicação.

[JN]: Algumas empresas, sim. Mas falo pela minha experiência. Eu aceito no máximo dois estagiários de cada vez. Não aceito mais. O meu objetivo não é aceitar um estagiário para descascar cebolas de graça. É com responsabilidade. E explico-lhes tudo: primeiro aprendem a cozinhar o prato do princípio ao fim, depois a empratá-lo. Não se emprata o que não se sabe fazer. Ponho um estagiário de manhã, outro à tarde, para aprenderem tudo — desde abrir a casa até ao serviço de jantar. Para mim, nesta área, ensinar significa partilhar saber com amor e rigor.

[AJ]: E consegue manter os seus colaboradores?

[JN]: Muitos ficam. Tenho um cozinheiro há 17 anos. Outros há 4, 5. E há um núcleo duro — eu, a minha irmã e a Zeza — que está comigo há 46 anos. Nunca gostei de aproveitamentos. Quem está comigo, recebe sempre alguma coisa, mesmo estagiário. Pago conforme a rentabilidade, mas pago. E só fica quem for boa pessoa. Não quero pessoas que minem o ambiente. Quero gente com vontade de aprender.

🗣️ “Não me arrependo de nada. Fiz-me cozinheira à minha custa. E faria tudo igual.”

[AJ]: Se pudesse, fazia alguma coisa diferente ou fazia tudo igual no seu percurso?

[JN]: Não lamento nada. Não me arrependo das 16 ou 18 horas de trabalho por dia. Fiz-me cozinheira à minha custa. Criei os meus pratos. Não trocava isto por estar sentada a uma secretária o dia todo. Gosto de falar com pessoas, conhecer culturas. A gastronomia abre-nos o mundo.

[AJ]: A atividade evoluiu muito, até na gestão dos horários. Eu lembro-me do meu pai, também ele restaurador…  os seus restaurantes eram as suas salas de convívio, onde recebia amigos, não clientes. Eram a sua segunda casa. E é isso que identifico na Justa e no Nobre. Quando vou ao seu restaurante, sinto-me em casa e em família, não sou uma cliente. E faz uma enorme diferença.

[JN]: Digo mais: o restaurante não é a nossa segunda casa, é a nossa primeira. A casa é só para dormir. O meu filho foi criado por empregadas, porque eu estava sempre no restaurante. Foi uma escolha, porque não queria abrir mão da minha profissão. Não podia escolher o horário, tinha de estar ao almoço e ao jantar. Esta profissão é o que é. E temos de aceitar ou não, temos que gostar dela ou não.

Mas há coisas únicas nestas profissões da restauração e do alojamento, como os amigos que fazemos, as pessoas que conhecemos e as relações que estabelecemos. Convivemos com muita gente de todas as classes, de todas as idades, de todos os países até. É fantástico. E isso significa oportunidades que não se teriam em outros setores de atividade.

[AJ]: Fica claro que esta profissão exige paixão, dedicação e esforço. E também é verdade que oferece oportunidades únicas. Há emprego. Não há desemprego neste setor.

[JN]: Nenhum. Cada vez há mais restaurantes, e cada vez precisamos de mais pessoas. Mas atenção: isto é uma profissão stressante. Não há tempo para mimar. Há tempo para puxar as pessoas para a frente. Não fiquem melindrados se o chefe dá um raspanete. Tenham fibra. Isto é para quem gosta do que faz. Para quem sente.

[AJ]: E a Justa já teve grandes chefes e estagiários consigo…

[JN]: Tive. Alguns têm estrela Michelin hoje. E agradecem-me até os raspanetes que lhes dei! Eu insistia: “Ah, não gostas de fazer isto? Faz até aprenderes. Depois vais gostar.” É assim. Temos de lutar e de ser bons naquilo que fazemos.

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